As cíclicas crises de determinados setores da economia sempre geram oportunidades de negócios para outros setores. E assim deve ser, para que a roda gire e o ambiente dos negócios prospere. Podemos então entender que a unidade produtiva isolada pode ser uma vertente de negócios da empresa sem estabelecimento segregado da matriz – um “braço” de negócios, uma parte do objeto social exercida na própria matriz, por exemplo, ou segregada dela fisicamente – ainda que não inscrita como filial perante a RFB. 

E para dar suporte a um ambiente saudável de negócios, é esperado que a legislação evolua para acompanhar as mudanças da sociedade, garantindo segurança jurídica e estabilidade nas relações.

Acompanhando essa necessidade de evolução, é que a antiga lei de falências (Decreto-Lei nº 7.661/1945) foi substituída pela Lei nº 11.101/2005, doravante LRF[1], passando a tratar, de forma inovadora, dos processos e negócios decorrentes da recuperação de empresas em dificuldade e dos processos de falência no Brasil.

A intenção do legislador foi tornar os processos e procedimentos mais céleres e eficientes, adotando os princípios da preservação da empresa (quando possível), da participação ativa dos credores e da otimização/maximização dos ativos do devedor ou da massa falida.

Esses princípios estão entrelaçados, na medida em que a otimização dos ativos do devedor ou massa falida atende aos interesses dos credores e, ainda, pode viabilizar a retomada de parte das atividades da empresa, após a alienação de alguns ativos ou unidades de negócio, com o reequilíbrio das contas.

Quando bem executado o plano de recuperação judicial, é possível atender aos interesses globais com a diretrizes da LRF, os quais estão bem delimitados no seu artigo 47:

“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”

O Ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, em voto proferido por ocasião o julgamento do Recurso Especial 1.187.404/MT[2], foi assertivo ao delimitar o espírito da LRF que é preservar a função social da empresa e corolários daí decorrentes. A conferir:

“Cumpre sublinhar também que, em se tratando de recuperação judicial, a nova Lei de Falências traz uma norma-programa de densa carga principiológica, constituindo a lente pela qual devem ser interpretados os demais dispositivos.

Refiro-me ao art. 47, que serve como um norte a guiar a operacionalidade da recuperação judicial, sempre com vistas ao desígnio do instituto, que é “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”. Com efeito, a hermenêutica conferida à Lei n. 11.101/05, no particular relativo à recuperação judicial, deve sempre se manter fiel aos propósitos do diploma.

Vale dizer, em outras palavras, nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resulta circunstância que – além de não fomentar – inviabilize a superação da crise empresarial, com consequências perniciosas ao objetivo de preservação da empresa economicamente viável, à manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores”.

Embora a LRF seja de 2005, o assunto ganha especial relevância pelas sucessivas crises econômicas que o Brasil vem enfrentando desde 2013, que criam um cenário fértil para as operações envolvendo distressed assets.

A aquisição de ativos estressados é vista com grande entusiasmo pelos investidores, em razão da maior probabilidade de fazer bons negócios.

Entretanto, para que seja atrativo, é imprescindível que haja um ambiente de segurança jurídica, para afastar o fantasma da contaminação dos ativos pelas dívidas do alienante.

Afortunadamente, a legislação tem evoluído de modo a amparar a possibilidade de venda de “parcelas da empresa”, de modo a preservar as atividades e a função social da empresa vinculadas a esta parcela específica, sem que isso traga risco de sucessão fiscal e trabalhista, conforme previsão do artigo 60 da LRF, que assim dispõe:

 “Art. 60. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142[3] desta Lei.” (Grifou-se)

Como se vê, nos termos da lei, as “parcelas da empresa” podem ser filiais ou “unidades produtivas isoladas”.

As filiais são objeto de definição legal e doutrinária como estabelecimentos vinculados e derivados da matriz da empresa, sem personalidade jurídica própria e sem corpo diretivo isolado – ou seja, a diretoria da empresa gerencia todas as suas filiais, assim como os quotistas ou acionistas destacam capital para suas atividades. As atividades da filial podem ser vinculadas ao objeto social da empresa ou às suas atividades-meio, devendo ser, de toda forma, constituídas por meio de deliberação societária e inscritas no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) onde ganham um número derivado da matriz, não para conferir-lhe o caráter de pessoa jurídica, mas tão somente para o cumprimento de determinadas obrigações tributárias acessórias.

A unidade produtiva isolada não tem o mesmo uso e amplo conhecimento do conceito de filial, sendo uma inovação da LRF, muito discutida pela doutrina. Justamente em razão das discussões para se alcançar esse conceito é que, no ano de 2020, foi promulgada a Lei nº 14.112/2020 que trouxe uma série de modificações para a LRF, dentre as quais o conceito de UPI, a conferir:

“Art. 60-A. A unidade produtiva isolada de que trata o art. 60 desta Lei poderá abranger bens, direitos ou ativos de qualquer natureza, tangíveis ou intangíveis, isolados ou em conjunto, incluídas participações dos sócios.”

A amplitude do conceito trazido pela lei nos leva à conclusão de que uma filial pode ser uma unidade produtiva isolada, uma vez que, como estabelecimento, é composta por um conjunto de ativos tangíveis e intangíveis de propriedade da empresa e direcionados para aquela unidade de negócio. Contudo, não necessariamente uma unidade produtiva isolada para os fins da LRF precisa ser ou estar inscrita como uma filial.

Isso porque, no caput do seu art. 60, transcrito anteriormente, o legislador utiliza-se da conjunção alternativa “ou” ao estabelecer filial ou unidade produtiva isolada. Podemos então entender que a unidade produtiva isolada pode ser uma vertente de negócios da empresa sem estabelecimento segregado da matriz – um “braço” de negócios, uma parte do objeto social exercida na própria matriz, por exemplo, ou segregada dela fisicamente – ainda que não inscrita como filial perante a RFB. 

Portanto, a unidade produtiva isolada, segregada fisicamente da matriz ou não, acompanha o mesmo conceito de estabelecimento comercial do Código Civil, qual seja:

“Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.     (Vide Lei nº 14.195, de 2021)

§ 1º O estabelecimento não se confunde com o local onde se exerce a atividade empresarial, que poderá ser físico ou virtual.”

Traçado o paralelo entre as filiais, unidades produtivas isoladas e o conceito de estabelecimento, para fins didáticos iremos nos referir a qualquer destes preceitos simplesmente como “UPI”.

Do ponto de vista societário, o destaque da UPI poderá ocorrer mediante operação de cisão parcial, com versão do patrimônio cindido, consubstanciado pelos ativos tangíveis e intangíveis que compõem a referida unidade ou vertente de negócios, para constituição de nova sociedade ou sociedade pré-existente, ou via drop-down de ativos para outra sociedade, via integralização de capital.

Em situações alheias à recuperação judicial ou à falência, a parcela cindida seria sucessora da matriz em todos os direitos e obrigações a ela vinculados, sendo sua incorporadora ou adquirente responsável por seus passivos de maneira integral.

No mesmo sentido, o Código Tributário Nacional[4] (CTN), em seu artigo 133, previu a sucessão tributária nos casos de alienação de fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, quando o adquirente continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual.

Conforme tratado no início deste artigo, a intenção do legislador com a LRF foi a de maximizar o valor dos ativos e, por consequência, as chances de recuperação da empresa em dificuldades e a satisfação dos credores.

Assim é que, no ano de 2005, foram trazidas importantes inovações no tocante ao afastamento da sucessão tributária nas aquisições de UPI ou filiais de empresas em recuperação judicial ou falência. Tais alterações vieram não só na LRF, mas também pela Lei Complementar (LC) nº 118/2005, na intenção de assegurar segurança jurídica aos negócios efetivados no âmbito da recuperação judicial, afastando o risco de sucessão tributária nas hipóteses trazidas pela LRF.

A LRF, conforme adiantado, previu o afastamento da sucessão tributária nos casos de aquisições de filial ou UPI em processos de recuperação judicial ou falência.

A LC nº 118/2005, por sua vez, incluiu três parágrafos no artigo 133 do CTN (que trata da sucessão tributária), para ressalvar, no ponto que aqui interessa, a sua inaplicabilidade na hipótese de falência ou de alienação de filial ou unidade produtiva isolada em processo de recuperação judicial, confirmando a previsão do artigo 60 da LRF.

É inquestionável a intenção do legislador em dar segurança jurídica aos negócios realizados no âmbito da recuperação judicial, ressalvadas as hipóteses de fraude, que foram assim delimitadas: não haverá sucessão de responsabilidade tributária na hipótese de aquisição de UPI ou filial, aprovada no plano de recuperação, desde que o adquirente não seja (i) sócio da sociedade falida ou da sociedade controlada pelo falido; (ii) parente, em linha reta ou colateral até o 4º (quarto) grau, consanguíneo ou afim, do falido ou de sócio da sociedade falida; ou (iii) identificado como agente do falido com o objetivo de fraudar a sucessão.

Passados quinze anos dessas alterações, foi publicada a Lei nº 14.112/2020, que trouxe relevantes alterações para a LRF, em sua maior parte para criar benefícios fiscais para as empresas em processo de recuperação judicial e falência, bem como para criar hipóteses de parcelamento das dívidas fiscais, que não entram no plano de recuperação.

Especificamente para o ponto em análise, interessa mencionar a alteração da redação do parágrafo único do artigo 60 da LRF, para melhor delimitar a extensão da responsabilidade do adquirente de ativos (filial ou UPI). Desde então ficou expressa a ausência de sucessão de obrigações de quaisquer natureza:

“Parágrafo único.  O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei.”

Nos parece redundante a afirmação, mas denota, novamente, a preocupação do legislador em estimular o ambiente de negócios no âmbito da recuperação judicial, afastando qualquer ruído de interpretação que adveio desde a promulgação da LRF, pela doutrina e pela jurisprudência.

Desde 2020, portanto, a ausência de responsabilidade do adquirente da UPI é extremamente abrangente, o que traz a esperada segurança jurídica para o adquirente.

Do ponto de vista da jurisprudência, cabe pôr em relevo as reiteradas manifestações do Superior Tribunal de Justiça no sentido de considerar competente o juízo especializado da Recuperação Judicial para decidir sobre a alegação de sucessão tributária e trabalhista.  A título de exemplo, o seguinte trecho da ementa do Conflito de Competência (CC) 151621 / SP[5]:

“A jurisprudência desta Casa tem reiteradamente reconhecido a configuração de conflito nas hipóteses em que juízos distintos divergem acerca da existência de sucessão nas dívidas e obrigações da recuperanda pela arrematante, nos casos de alienação judicial de unidade produtiva (art. 60, parágrafo único, c/c art. 141, § 1º, da Lei n. 11.101/2005), inclusive declarando a competência do Juízo da recuperação judicial, haja vista ser este o mais habilitado para verificar a extensão e a higidez da alienação, além do evidente prejuízo decorrente do desenvolvimento simultâneo da atividade jurisdicional, sobre o mesmo tema, pelos juízos suscitados.”

Tal posicionamento afasta o risco de outros juízos menos especializados relativizar a proteção da ausência de sucessão dos adquirentes de ativos no contexto da LRF.

O panorama aqui traçado demonstra que o aperfeiçoamento da LRF cria um ambiente estável e seguro para a celebração de negócios, reestruturações de empresas, maximização de ativos, satisfação de credores e soerguimento das empresas em dificuldades.


[1] Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

[2] Corte Especial do STJ, DJe: 21/08/2013.

[3] A alienação deve observar os procedimentos descritos no art. 142 da LRF, que prevê que a alienação deverá se dar por meio de (i) leilão eletrônico, presencial ou híbrido; (ii) processo competitivo organizado promovido por agente especializado e de reputação ilibada, cujo procedimento deverá ser detalhado em relatório anexo ao plano de realização do ativo ou ao plano de recuperação judicial, conforme o caso; ou (iii) por qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos da lei. Ainda, ocorrerá no prazo máximo de 180 dias contados da lavratura do laudo de arrecadação, quando o processo se der no âmbito da falência, independentemente do momento de mercado – se positivo ou negativo, em ciclo de alta ou baixa – e do quadro geral de credores.

[4] Lei nº 5.172/1966.

[5] Relator para acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Segunda Seção do STJ, DJe 04/12/2018.