(Relativização do Art. 170-A do CTN)

O art. 170-A do Código Tributário Nacional prescreve que “é vedada a compensação mediante o aproveitamento de tributo, objeto de contestação judicial pelo sujeito passivo, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial”

Referida disposição foi introduzida no ordenamento pela Lei Complementar nº 104/2001, com a finalidade de que “tal procedimento somente seja admitido quando o direito tornar-se líquido e certo[1].

O propósito da introdução legal é compreensível. De fato, em se tratando a compensação de forma de extinção do crédito tributário (art. 156, II, do CTN), é justo que se proteja a Administração (e o dinheiro público) de créditos sub judice baseados em decisões precárias e reversíveis.

Por outro lado, a regra acaba por criar um impeditivo injustificado quando se está diante de créditos líquidos e certos, obstados de aproveitamento por conta de inesgotáveis recursos do fisco, notadamente quando lastreados em decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral.

Da mesma forma, não se pode deixar de observar a incongruência da vedação em questão em relação aos princípios tão invocados nos últimos tempos pelo legislador processual civil, quais sejam, de observância às decisões tomadas em recursos representativos de controvérsia (arts. 1.036 a

1.041, CPC), e a tutela de evidência (art. 311, CPC).

Esses institutos, como se sabe, objetivam a celeridade processual, além da própria segurança jurídica, ao privilegiarem as decisões repetitivas das Cortes Superiores.

Tanto é assim que o Código de Processo Civil de 2015 previu em seu art. 1.036 que, em havendo multiplicidade de recursos fundados em idêntica controvérsia, o Tribunal de origem deve selecionar um ou mais recursos e encaminhá-los aos Tribunais Superiores, sobrestando os demais (art. 1.036), nos quais será aplicado o entendimento fixado no recurso alçado a leading case, conforme previsão do art. 1.040.

Além disso, o art. 927 do Código Processual determina a necessidade de os Juízes e Tribunais observarem a jurisprudência dos Tribunais Superiores[2].

Como se vê, a “nova” ordem processual prevê não apenas uma orientação, mas absoluta observância às decisões proferidas em sede de recursos representativos da controvérsia (repercussão geral e recursos repetitivos) pelas instâncias inferiores.

O art. 311 do CPC possibilita a concessão da tutela de evidência, prescindindo de demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando houver fundamento em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos.

Isso significa dizer que, mesmo as decisões passíveis de reversão, na atualidade, têm tido maior congruência com a jurisprudência pacificada pelas Cortes Superiores, o que é uma vitória para a segurança jurídica, há tempos perseguida, tanto pelos contribuintes, quanto pelos próprios entes públicos.

Sobre esse aspecto, vale notar que a própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) está dispensada legalmente de apresentar recursos ou contestações em feitos que estejam em conformidade com matéria pacificada no âmbito dos Tribunais Superiores, nos termos do art. 19 da Lei Federal nº 10.522/2012.

Nesse contexto, verifica-se que existe todo um arcabouço legal que sustenta a relativização da vedação contida no art. 170-A do CTN para possibilitar ao contribuinte a habilitação de créditos incontroversos, isto é, lastreados em decisões que suprem essa eventual discussão sobre certeza e liquidez!

Traçando-se uma interpretação histórica, baseada na exposição de motivos do Projeto de Lei que inseriu a vedação contida no art. 170-A do CTN (quando não havia a previsão de vinculação das decisões dos Tribunais Superiores), e sistemática, isto é, aparelhada por toda a nova ordem processual prevista no ordenamento, se mostra totalmente plausível e justificável o afastamento da vedação nos casos em que o crédito é certo e líquido, decorrente da aplicação de julgamentos de recursos representativos de controvérsia.

Nesse sentido, ainda antes da vigência do CPC 2015, o Ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal, em caso que discutia a compensação de verbas indenizatórias (RE nº 895.351, DJE nº 157, divulgado em 10/08/2015), afastou a aplicação do art. 170-A, consignando pela inaplicabilidade da vedação nas ocasiões em que a matéria já tiver sido pacificada nos âmbitos dos Tribunais

Superiores, pautado no princípio da razoabilidade[3].

Também os Tribunais Regionais Federais da 1ª e da 3ª Região já afastaram a aplicabilidade da vedação generalista prevista no art. 170-A do CTN[4], e até mesmo o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), instância máxima do Administrativo Federal, já previu a possibilidade de excepcionalidade da aplicabilidade do artigo, como se pode conferir do julgado abaixo:

“(…) COMPENSAÇÃO. PEDIDO REALIZADO ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO EM FAVOR DO CONTRIBUINTE. QUESTÃO DE CONTEÚDO QUE DEVE SE SOBREPOR À FORMA. PREVALÊNCIA DA RATIO DECIDENDI DE PRECEDENTE PRETORIANO DE CARÁTER VINCULANTE COM A ADEQUAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 170-A DO CTN.
Embora o pedido de compensação perpetrado pelo contribuinte tenha se contraposto à literalidade do art. 170-A do CTN, ao final do processamento judicial a lide por ele proposta foi julgada procedente, com base em precedente vinculante do STF. (RE n. 357.950) o que, por sua vez, faz convocar em seu favor o disposto nos artigos 489, § 1o, inciso VI, 926 e s.s., todos do CPC/2015, bem como o disposto no art. 62, § 1º, inciso II, alínea “b” do RICARF e, ainda, ao prescrito no art. 2o, inciso V da Portaria PGFN n. 502/2016.” (grifou-se) (Recurso Voluntário, Processo nº 10880.906342/2008-96, Acórdão nº 3402.005.025, 4ª Câmara / 2ª Turma Ordinária, Sessão de 22 de março de 2018)

Como bem pontuado pelo Conselho no precedente acima, em casos de jurisprudência baseada em repercussão geral, a forma não pode se sobrepor ao conteúdo, atraindo a aplicação dos arts. 489, §1º, inciso VI, 926 e subsequentes do CPC[5].

No ano de 2020, ganhou destaque decisão nesse sentido, proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal de Osasco/SP, para contribuinte que pretendia, em sede de liminar, autorização para utilizar – desde logo – parcela de crédito reconhecido em ação judicial referente a exclusão do ICMS da base de cálculo das contribuições ao PIS e à COFINS, pendente de julgamento por conta de Agravo Interno da União.

No caso (MS 5000570-18.2020.4.03.6130), o Juiz entendeu que a compensação do crédito nos termos da Solução de Consulta COSIT RFB 13/2018 (que prevê o creditamento sobre o ICMS pago e não o destacado para a habilitação de créditos decorrentes de ação judicial que discutia a tese) refere-se a parcela de crédito incontroverso, que não comporta mais discussão, independentemente do resultado dos embargos de declaração da União, pendentes de julgamento no leading case sobre a matéria (RE 574.706).

Segundo a decisão, “se por um lado a posição externada pela União Federal, através de sua administração tributária, foi no sentido de procurar restringir o cálculo do indébito a ser reconhecido a favor dos contribuintes, por outro representou o reconhecimento expresso e inconteste da própria União no sentido de que a parcela desse indébito calculada da forma defendida nos atos administrativos acima transcritos (com a exclusão do ICMS devido ao final do mês da base de cálculo do PIS e da COFINS) é certa”.

Como bem salientado, ainda que os embargos de declaração opostos pela Fazenda Nacional nos autos do RE nº 574.706 sejam providos – julgamento pautado para o próximo dia 29 de abril – a compensação, realizada nos termos da SC 13/18 e da Instrução Normativa 1.911/19, não será de forma alguma atingida.

Como se vê, a relativização do art. 170-A do CTN é uma possibilidade completamente razoável nos casos em que se discute créditos incontroversos. Por outro lado, a vedação à compensação antecipada nesses casos, sobretudo em meio à crise que o país atravessa, é uma forma de mitigar o direito do contribuinte, que, cansado de perder, já não consegue ganhar nem mesmo quando vence.

Por Claudia Frias


[1] Conforme exposição de motivos do Projeto de Lei Complementar 104/01.

[2] “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

  1. – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; 
  2. – os enunciados de súmula vinculante;
  3. – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
  4. – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
  5. – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”

[3] “(…) V – Tendo em vista que a matéria relativa à exigibilidade de contribuição previdenciária sobre a remuneração paga em virtude do afastamento do empregado no período de quinze dias que antecede a concessão de auxílio doença/acidente, bem assim sobre o abono constitucional de férias (1/3) encontra-se, atualmente, pacificada nos colendos STF e STJ, não se mostra razoável aguardar-se o trânsito em julgado de decisum para a efetivação da compensação do indébito tributário em referência, quando inexistente qualquer possibilidade de alteração da situação jurídica já reconhecida, nos autos. Ademais, segundo a inteligência do art. 557, caput e respectivo §1º, do CPC, o relator negará seguimento a recurso manifestamente em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, ou ainda, estando a decisão recorrida em manifesta contrariedade à súmula ou à jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento, de pronto, ao recurso, pelo que se verifica, assim, a inaplicabilidade do art. 170-A, do CTN, na espécie, diante da perfeita harmonia do acórdão desta 8ª Turma com o entendimento jurisprudencial consolidado nos colendos STF e STJ nesta matéria, a possibilitar a eficácia plena e imediata da garantia fundamental da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII e respectivo §1º) na materialização instrumental do processo justo.” (grifou-se)

[4] Vide processos 2007.35.00.026849-0/GO e 0000835-29.2006.4.03.6120

[5] “Art. 489. (…)

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

(…)

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.” “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.  § 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante. 

§ 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.”